(Se preferir ouvir este post narrado com a minha voz, em vez de ler, toque no player acima. Não é IA, é minha locução gravada)
Imagine que você tirou uma tarde de folga e finalmente encontrou um tempo para relaxar. Não há mais nenhum compromisso agendado e você pode se dar ao luxo até de colocar o celular no silencioso. O dia lindo, friozinho com sol, perfeito pra conhecer aquele café que há tempos quer conhecer.
Chegando lá, você é recebido de maneira cortês, se acomoda na mesa mais bem localizada possível, olha o cardápio, resolve pedir um bolinho e um capuccino, e agora tudo o que tem que fazer é abrir seu livro e esperar.
DO NADA, a gerente do bar, uma mulher bem mais velha que você, te pega distraída e concentrada no seu livro, dá um agarrão por trás, imobilizando seus braços com um abraço apertado na região do tórax. Pra completar, lhe arranca um beijo na bochecha, deixando uma marca de batom.
Como você reagiria?
Ressaltando: VOCÊ NUNCA HAVIA VISTO ESSA MULHER NA VIDA.
Pois é…
Isso aconteceu com a Lara, minha filha de 2 anos e meio. Ela, na mesma hora, protestou e tentou acertar um tapa nessa moça. E ainda teve que ouvir (da moça):
“— Nossa, que brava.”
Eu não corrigi o comportamento da Lara. Não pude. Deixei-a expressar a raiva e tentei plantar uma sementinha de senso de dignidade e segurança. A única coisa que eu disse, tentando usar a voz mais serena do mundo, foi:
“— Tem que pedir permissão primeiro, né, filha?”
A moça ficou meio sem-graça e se afastou em silêncio. Na sequência eu disse pra Lara, bem baixinho, que ela não tem que aceitar isso e que ela estava segura para expressar essa raiva. Estava tudo bem.
Um detalhe: não era um café. Era um parquinho de diversões, um centro de entretenimento com pula-pula, piscina de bolinha, casinha etc em um shopping de São José do Rio Preto… ou seja, um lugar onde as pessoas deveriam receber um bom treinamento para lidar com crianças. O que é ainda mais preocupante.
Qual é o chip defeituoso no cérebro das pessoas que as fazem achar que podem tocar, abraçar e beijar uma criança sem consentimento? No mundo adulto isso causaria indignação em qualquer um! Por que no mundo infantil isso parece ser mais aceito? Gente, não faz nenhum sentido.
Me parece que existe um condicionamento social enraizado que infantiliza o respeito, como se crianças fossem "menos humanas", "menos dignas de consentimento", e, por isso, podem ser tocadas, beijadas ou invadidas emocionalmente sem que isso seja considerado um abuso de limite. Nós precisamos parar, urgentemente, de romantizar a infância, que idealiza a criança como um ser fofo, puro e acessível. É isso que gera comportamentos invasivos disfarçados de “carinho”, mas que, na verdade, violam o direito da criança ao próprio corpo. E, pior ainda, pelo Santo Ó do Borogodó, muita gente acredita que reagir à invasão é sinal de má educação — quando, na verdade, é o contrário: reconhecer e respeitar limites é o que deveria ser ensinado desde cedo, tanto para adultos quanto para crianças. É o que eu estou tentando fazer neste exato momento.
Crianças têm sentimentos — e é quase inacreditável que eu precise dizer isso. A única diferença é que ela não sabe nomear estes sentimentos. Nós sabemos. O que mais me deixa indignado é que mesmo sabendo o que a criança está sentindo, nosso chip defeituoso simplesmente desconsidera seus sentimentos.
“— Nossa, que brava”.
Ah, é? Vou esperar você voltar pra recepção, e quando estiver distraída, vou te agarrar por trás e lascar um beijão molhado na bochecha. Será que eu seria preso e processado? Seráááá?
Uma outra coisa que eu já percebi que incomoda a Lara: falar dela na sua frente, como se ela não estivesse ali. Que estupidez a nossa, não? É claro que a criança percebe essas coisas. É um outro tipo de invasão emocional, de invalidação.
Em todas as vezes que vou contar algo engraçado ou fofo que a Lara fez, eu começo me dirigindo primeiro à ela:
“— Filha, nos conte sobre o dia que você viu o moço dançando na rua” (ela viu os moços da Carreta Furacão e ficou vidrada kkk) em vez de: “— Fulano, a Lara viu a carreta furacão na rua e ficou alucinada, foi muito engraçado” — e ela ali, ouvindo, com cara de paisagem, tentando entender por que estão falando dela.
Quando fazemos isso — quando a incluímos na conversa — tenho certeza que ela se sente valorizada, se sente vista, e se sentindo vista, se reconhece nela mesma. A opinião dela importa e ela saberá disso desde cedo.
Creio que é desta forma que podemos reduzir os danos inconscientes que causamos nas nossas crianças, invalidados que fomos. Afinal, se queremos que nossas crianças se tornem adultos resilientes, maduros, capazes de lidar com frustrações e reconhecer abusos e autoritarismos, isso começa agora — e definitivamente não passa pelo desrespeito ou pela negação dos seus sentimentos.
Eu gostaria muito, muito mesmo, que esse texto alcançasse o maior número possível de pessoas abertas a refletirem sobre isso. Se puder, faça sua parte e compartilhe. Eu agradeço muito.
Obrigada por compartilhar, Leandro.
Muitos abusos ainda acontecem por essa falta de bom senso dos adultos.
Validar e acolher os sentimentos de uma criança salva vidas.